TCU aponta que menos de 3% de multas aplicadas por agências reguladoras são efetivamente arrecadadas no Brasil
Por: Isadora Cohen e Daniel Silva Pereira. Publicado originalmente no JOTA
Em 7 de julho deste ano, o site Poder360 divulgou um levantamento abrangendo 11 agências reguladoras federais, cujo resultado aponta que, com exceção da Ancine, que não respondeu à pesquisa, as agências federais acumularam, ao longo das últimas décadas, mais de 2,7 milhões de multas aplicadas, somando um total de R$ 23 bilhões a receber.[1]
A ANS, reguladora da saúde privada, lidera a lista com 1.597 multas aplicadas, correspondendo a R$ 7,6 bilhões em multas a receber. Em seguida, a ANP, do setor de petróleo e gás, registrou 42.840 multas, somando R$ 5,5 bilhões. Completam o top 5 a Aneel, com multas totalizando R$ 2,7 bilhões; a ANTT, com impressionantes 2.413.906 multas, que somam R$ 2,6 bilhões; e a Anatel, com 16.120 multas, acumulando R$ 2,4 bilhões.
A pesquisa revelou também que há autuações com mais de 20 anos sem pagamento, sendo que R$ 13 bilhões estão em cobrança na esfera jurídica, enquanto o restante é disputado na esfera administrativa das próprias agências.
Esses dados corroboram os achados identificados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em auditoria realizada no primeiro semestre de 2020, cujo objetivo era analisar o processo de aplicação de multas pela Anvisa. A auditoria, posteriormente ampliada para outras agências reguladoras, revelou que menos de 3% das multas aplicadas pelas agências federais são efetivamente arrecadadas.[2]
No caso da ANTT, responsável pela regulação do setor de transportes, o índice de arrecadação era de apenas 0,75%. Entre mais de 550 multas emitidas, no período de 2015 a 2016, totalizando R$ 832 milhões, apenas R$ 6,2 milhões foram efetivamente arrecadados. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) apresentou um índice ligeiramente superior, arrecadando 6,93% das mais de 13 mil multas aplicadas, o que representa R$ 13,3 milhões de um total de R$ 192 milhões.
Entre as agências de transportes, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) obteve o melhor desempenho, arrecadando 32,5% do total de 546 multas aplicadas, equivalente a R$ 5,4 milhões. No ranking geral da pesquisa, a Antaq foi superada apenas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que arrecadou 42,25% das multas aplicadas, apesar de ter aplicado o menor valor total de multas no período.
Esses resultados demonstram a ineficiência do modelo regulatório baseado em comando e controle, ainda amplamente adotado pelas agências reguladoras. A experiência regulatória, tanto nacional quanto internacional, tem evidenciado que esse modelo tem falhado sistematicamente em corrigir comportamentos desviantes de maneira eficaz.
Do ponto de vista dos reguladores, a adoção desse modelo pode levar à falsa crença de que a eficácia de sua atuação está vinculada à aplicação de sanções, resultando em penalidades muitas vezes desproporcionais. Já os agentes regulados tendem a adotar uma mentalidade de conformidade mínima, cumprindo apenas o necessário para evitar penalidades, o que desestimula a inovação e os investimentos na prestação de serviços.
Além disso, a baixa arrecadação das multas aplicadas, evidenciada nos levantamentos anteriormente apontados provoca inafastáveis questionamentos sobre a eficácia desse modelo em induzir o cumprimento das normas setoriais. Em muitos casos, as multas não são pagas, e o percentual de arrecadação é alarmantemente baixo, comprometendo a efetividade do modelo regulatório.
Diante desse quadro, a adoção de um modelo regulatório que combine instrumentos econômicos de incentivo à adoção de melhores práticas com medidas punitivas proporcionais parece ser a chave para o sucesso da regulação nas sociedades atuais, complexas e dinâmicas.
Há de se buscar uma combinação ótima e flexível entre as medidas punitivas e rigorosas e as respostas suaves e persuasivas.[3] A combinação de uma estratégia de Regulação Responsiva com elementos de Regulação por Incentivos[4], por exemplo, emerge como uma alternativa particularmente promissora, para promover respostas que oscilem de acordo com o comportamento específico dos agentes regulados.
A Regulação Responsiva oferece uma abordagem mais flexível e adaptada às particularidades de cada entidade regulada, levando em consideração seu contexto específico e suas circunstâncias. Este modelo reconhece que as empresas diferem em sua disposição e capacidade para cumprir as regulamentações. Por isso, propõe uma resposta regulatória escalonada: inicia-se com métodos mais colaborativos e conciliatórios, avançando para medidas mais punitivas apenas quando necessário, com as sanções reservadas como último recurso.[5]
No Brasil, essa abordagem já vem sendo recentemente adotada por diversas agências reguladoras, como Aneel, Antaq, Anac e Anatel. A ANTT, por exemplo, já incorporou explicitamente a regulação responsiva como elemento central em seu Ciclo de Planejamento Estratégico atual (2020-2030).
O TCU também já se manifestou sobre a regulação responsiva, especialmente nos Acórdãos Plenários 4.547/2020 e 651/2016, nos quais analisou sua implementação pela Aneel em casos de descumprimentos contratuais relacionados à qualidade dos serviços prestados. Em ambas as ocasiões, o TCU considerou a regulação responsiva uma técnica moderna e eficaz, que superou as limitações de uma fiscalização restrita, que não seguia a periodicidade adequada devido à falta de recursos humanos.
Isso não significa que o modelo de comando e controle tenha perdido completamente o seu lugar, mas sim que este deve ser conjugado com instrumentos econômicos de incentivo à adoção de melhores práticas, para, em conjunto, obter resultados mais eficazes no combate à prática de condutas inadequadas por agentes regulados.
É que, como bem frisado pelo ministro Bruno Dantas e acolhido pelos demais ministros do TCU, no Acórdão Plenário 1.174/2018, “a aplicação de penalidades deve ser instrumentalizada pela agência como componente de uma estrutura de incentivos que desestimule o descumprimento contratual por parte do concessionário”.[6]
É desejável, portanto, que os reguladores reconheçam a necessidade de integrar diferentes métodos e estratégias regulatórias, superando as limitações do modelo tradicional de comando e controle, evidenciadas pela baixa efetividade na arrecadação das penalidades aplicadas.
Somente através dessa convergência será possível alcançar uma regulação mais eficiente, alinhada com os objetivos sociais e que preserve o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, garantindo resultados superiores em termos de bem-estar social e eficácia regulatória, especialmente em setores regulatórios complexos.
[1]PODER360. Agências reguladoras somam mais de R$ 23 bi em multas a receber. Poder360, 07 jul. 2024. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/poder-economia/agencias-reguladoras-somam-mais-de-r-23-bi-em-multas-a-receber/>. Acesso em: 18 ago. 2024.
[2]A pesquisa consta do Relatório de Auditoria emitido nos autos do Processo TC nº 001.814/2019-2. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Plenário. TC nº 001.814/2019-2. Rel. Augusto Nardes, Julgamento em: 17/03/2021.
[3]Nesse mesmo sentido: VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp.132-133.
[4]Nas palavras de Gustavo Binenbojm, “há uma espécie de instrumento regulatório especificamente destinado a induzir ou estimular comportamentos; trata-se da chamada regulação por incentivos, que opera por normas fundadas no binômio “prescrição-prêmio”. Mais à frente, o autor explica ainda que “em determinadas situações regulatórias, a aplicação de mecanismos normativos menos intrusivos à esfera de liberdade dos agentes regulados pode se mostrar pragmaticamente mais eficiente à obtenção dos resultados socialmente desejados, em caráter autônomo ou complementar às normas de comando e controle”. BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação e regulação. 3. ed, 1ª. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p.166.
[5]AYRES, I., & BRAITHWAITE, J. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.
[6]TCU. Acórdão nº 1.174/2018 Relator: Ministro Bruno Dantas, Data de Julgamento: 28/07/2021
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