Ordenamento jurídico confere primazia à preservação da relação contratual em detrimento de extinção antecipada
ISADORA COHEN
JÉSSICA LOYOLA CAETANO RIOS
Originalmente publicado no JOTA
Em artigo recente de nossa coluna[1], defendemos a posição central do diálogo nas parcerias público-privadas e a necessidade de que as partes contem com um espaço aberto à negociação sobre temas complexos que se apresentem ao longo da relação, primando pela cooperação e participação conjunta na gestão do contrato, na identificação de problemas e fragilidades contratuais e na construção de soluções inovadoras, customizadas às especificidades do negócio, que permitam o cumprimento do objetivo pretendido com o empreendimento no decorrer do tempo.
Portanto, o sucesso do projeto, que interessa igualmente a ambas as partes, está intimamente relacionado à capacidade do contrato de sobreviver às vicissitudes do tempo, o que, por sua vez, só será possível se a moldura contratual for flexível o suficiente para se conformar a essas instabilidades. Se tal fato, por si só, já seria suficiente para confirmar a importância – e, mais do que isso, a necessidade – das negociações público-privadas nos contratos de parceria, há ainda um relevante elemento adicional: o nosso ordenamento jurídico conferiu primazia à preservação da relação contratual em detrimento de sua extinção antecipada.
Nesse sentido, a Lei de Concessões incluiu a caducidade como última alternativa para extinção do contrato de concessão, podendo ser declarada “a critério do poder concedente”, desde que, antes de uma eventual declaração da caducidade, seja concedido à Concessionária “prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais”[2]. Observa-se, assim, a clara opção do legislador pela preservação da concessão mesmo em casos de descumprimentos contratuais por parte da Concessionária, impondo-se às partes esforços conjuntos para a readequação dos serviços às normas, critérios e parâmetros de qualidade do contrato.
Se mesmo em situações de descumprimento contratual reiterado, nas quais haveria um descompasso entre a atuação da Concessionária e os objetivos pretendidos à época da sua contratação, confere-se primazia à continuidade da concessão, que dirá nos cenários em que a execução do contrato se torna difícil ou inviável por decorrência de intercorrências pós-licitação imprevisíveis ou de difícil previsão à época do procedimento licitatório. Nesses casos, é ainda mais pungente a necessidade de cooperação, diálogo e esforços conjuntos das partes para a construção das soluções mais adequadas à continuidade da concessão.
De fato, não há vedação legal para a negociação no âmbito dos contratos de parceria e tampouco seria possível obstá-la pelo limitado argumento da vinculação ao instrumento convocatório – fosse assim, estar-se-ia engessando toda uma relação que, por natureza, deve ser flexível e adaptável às transformações que inexoravelmente irão ocorrer ao longo dos anos. A tecnologia se desenvolve e os interesses, anseios e expectativas dos usuários e do próprio Concedente se modificam no decorrer do tempo, de modo que os contratos de infraestrutura estarão sempre suscetíveis a realidades distintas daquela que se pôs quando da realização da licitação, e que imporão a esses arranjos a conformação necessária para que se alcance a finalidade inicialmente pretendida com a contratação.
O cenário é, portanto, absolutamente convidativo ao diálogo, à consensualidade e à negociação: de um lado, está-se a falar de contratos de longo prazo, naturalmente incompletos e suscetíveis, portanto, às inevitáveis transformações do futuro; de outro, as partes têm o dever legal de preservação da relação. Nesse contexto, quem melhor do que as próprias partes para identificarem as fragilidades dos contratos e pensarem as alternativas para que o contrato atinja a contento as finalidades para as quais eles foram celebrados?
No âmbito do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionatório, há os exemplos do acordo de colaboração premiada, do acordo de leniência e da celebração de termos de compromisso e de ajustamento de condutas. Mais recentemente, o §1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa foi alterado, para inclusão de autorização expressa de transação dos interesses ali tutelados. Por sua vez, o Código de Processo Civil[3] estabelece que a consensualidade deve ser estimulada, mesmo no curso do processo judicial. Nessa mesma toada, a Nova LINDB[4] conferiu autorização geral de transação à autoridade administrativa “para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”.
Essa tendência foi seguida também pelos contratos de parceria, notadamente com a inclusão de cláusulas de resolução consensual de litígios, destacando-se a mediação, a arbitragem e os Dispute Boards. Aliás, muito antes da entrada em vigor da Lei de Mediação e da Lei de Arbitragem, a própria Lei Geral de Concessões[5] já autorizava o “emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato”.
Veja-se: ao tempo em que confere prevalência à preservação da concessão, a Lei nº 8.987/95 também autoriza expressamente o emprego de “mecanismos privados” de resolução de disputas. Sendo assim, não parece razoável assumir que as partes não podem transigir ao longo da execução contratual, sobretudo quando se trata de ajustá-la a circunstâncias fáticas inexistentes ou inimagináveis à época da licitação, mas que carecem de tratamento adequado para que se possa atingir a finalidade pretendida com a concessão.
Tampouco faria sentido a Administração Pública quedar-se inerte, por uma pretensa impossibilidade de negociação com o parceiro privado, até que não houvesse mais solução que não o litígio, seja quanto a um reequilíbrio do contrato, seja para a extinção antecipada desse, com potenciais litígios para discussões quanto à legalidade do ato administrativo, valor da indenização devida à concessionária, dentre outros, que podem se arrastar por longos anos e, ao certo, não são benéficos a qualquer das partes. De fato, nos parece que, ao impor às partes o dever de preservação do contrato, a Lei Geral de Concessões quis autorizá-las a se valerem de todos os mecanismos disponíveis para que o contrato possa, por ele mesmo, sobreviver e resistir às intercorrências do tempo.
Naturalmente, a possibilidade de negociação entre as partes não importa dizer que poderão elas defenderem seus interesses individuais e tampouco poderá servir para preservar um contrato que já não é mais capaz de atender aos objetivos pretendidos quando de sua concepção. A busca pelo resultado, que culminará na prestação do serviço público adequado e no atendimento ao interesse público, é que deverá nortear as negociações entre as partes, a quem caberá identificar as potencialidades do projeto, as soluções disponíveis à consecução da finalidade pública originalmente pretendida e os elementos justificadores para tanto.
Evidentemente, não se defende a exclusão de órgãos de controle, agências reguladoras e outras autoridades públicas do processo de negociação, mas sim uma mudança de cultura a respeito dos contratos de parceria. Vale dizer, muito mais do que se apegarem aos termos estritos do contrato e às condições originais da licitação, cabe a esses órgãos reconhecer que esses arranjos são naturalmente incompletos, conferindo às partes a liberdade necessária para transigirem durante a vigência contratual, podendo, inclusive, estabelecer protocolos e diretrizes que legitimem as soluções alcançadas conjuntamente pelas partes e orientem o diálogo ao longo da relação.
Nesse contexto, também ganham importância o uso de mecanismos que viabilizem o monitoramento e a valoração dos dados, resultados e externalidades positivas do contrato, permitindo-se, assim, maior clareza quanto aos custos, benefícios e potenciais prejuízos de se preservar a relação contratual em detrimento de extingui-la. Na era dos dados, não é apenas possível, mas absolutamente desejável contar com indicadores objetivos, capazes de orientar as partes sobre os custos da manutenção ou extinção da relação contratual, balizando os seus direitos e deveres em cada situação concreta.
A partir dessas premissas, viabiliza-se o estabelecimento de uma verdadeira relação de ganha-ganha: ganham concedente e concessionário, com a preservação de uma concessão atual, equilibrada, e conformável a um mundo que está em constante mudança, além da redução da litigiosidade e, por via de consequência, o estabelecimento de uma relação pautada pela cooperação e pelo diálogo. De outro lado, ganham os usuários, para quem devem ser pensadas e destinadas toda e qualquer nova medida adotada pelas partes com vista à continuidade da concessão.
[1] O presente artigo foi inspirado também nas reflexões propostas pelo Professor Egon Bockmann Moreira no episódio 18 do seu “Aula de Amanhã”, no qual, ao tratar da extinção e prorrogação dos contratos de concessão, destacou a importância de que Poder Público e particular aprendam a negociar.
[2] Artigo 38, §3º, da Lei n° 8.987/95.
[3] D acordo com o artigo 3°, §3°, do CPC: A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
[4] Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
[5] Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.
ISADORA COHEN – Fundadora INFRACAST. Presidente Infra Women Brazil. Sócia ICO-Consultoria. Professora do MBA de PPPs e Concessões da PUC MINAS e do MBA LSE FESP.
JÉSSICA LOYOLA CAETANO RIOS – Graduada em Direito pela UnB. LLM em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London. Advogada em Piquet, Magaldi e Guedes Advogados.
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