Relativização do novo Marco do Saneamento seria um caminho do meio para a universalização?
Isadora Chansky Cohen
Enzo Rizetto
Matheus Cadedo
Publicado originalmente no JOTA
No último dia 30 de novembro, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) emitiu um comunicado ao mercado informando que as microrregiões Centro-Litoral (MRAE-1), Centro-Leste (MRAE-2) e Oeste (MRAE-3) do estado do Paraná haviam aprovado a regularização de 25 contratos provisórios de saneamento, através da prestação direta regionalizada pela estatal paranaense.
Apesar de o fato relevante ter sido publicado[1], não há qualquer detalhamento sobre a natureza desses 25 contratos e, tampouco, não está publicizado seu conteúdo. Tudo leva a pressupor que são contratos que permitirão a prestação dos serviços de saneamento básico para 25 municípios pela Sanepar. Isso é, a empresa estatal assumirá os serviços de água e esgoto sem ter participado de licitação.
A iniciativa lembra o modelo de regionalização levado a cabo pelo estado da Paraíba. Lá, uma lei estadual abriu a possibilidade de que os colegiados de governança das microrregiões pudessem autorizar a delegação dos serviços de saneamento dos municípios para a Cagepa, tendo por consequência a prorrogação de prazo de 48 contratos de programa até o ano de 2055.
Essa prática, que vem se disseminando no Brasil sem um debate aprofundado, pode ser problemática. Mas, ao mesmo tempo, pode se revelar como uma tentativa de equacionar alguns desafios práticos que foram encontrados por municípios após a publicação do novo Marco Legal do Saneamento.
De modo geral, há, de um lado, o “espírito” do novo marco do saneamento, cuja diretriz fundante é estimular a competição e eficiência no setor para viabilizar a universalização pelos prestadores — público ou privados — que possam, de forma mais acelerada promover os necessários investimentos. E do outro, uma interpretação discutível da tese de titularidade compartilhada dos serviços públicos de saneamento, que acaba por garantir a sobrevida do modelo institucional que determinou a organização do setor durante décadas, com a preponderância das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESB).
Se se perpetuar o cenário pré-marco legal, o risco é de que a velha prática — de contratos que sejam realizados em um ambiente de não competição e sem observância de metas e indicadores importantes — seja renovada, mas revestida de uma “nova roupagem”. Uma gestão associada (revisitada) com trajes de teses jurídicas abstratas poderia ter um efeito perverso, em especial se não levar em consideração aspectos econômico-financeiros e técnicos que, no final das contas, estão aí para assegurar a qualidade na prestação e a universalização desses serviços essenciais.
Do ponto de vista jurídico e à luz do novo marco, a solução adotada poderia ser considerada, ao menos, questionável. Mas, ao mesmo tempo, pode ser a forma que os municípios encontraram de, justamente, conduzir licitações para posteriores parcerias público-privadas.
Os arranjos realizados no Paraná e na Paraíba, ainda que não tenham observado disposições importantes no arcabouço jurídico pátrio, podem revelar a dificuldade de municípios promoverem autonomamente a “prestação regionalizada” dos serviços de saneamento básico. E aí, eles ainda precisam da CESB para essa finalidade.
É verdade que a linha argumentativa usada pela Sanepar pode desconsiderar alguns pontos essenciais. O primeiro elemento diz respeito à lógica sustentada pelo STF. O Tribunal reconhece a possibilidade de titularidade compartilhada (entre estado e municípios) nos casos de interesse comum. Mas o novo marco qualifica essa tese: só há interesse comum quando existe compartilhamento efetivo de instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Ou seja, há a necessidade de uma infraestrutura física e territorial que engloba a área regionalizada, sem a qual a titularidade conjunta não poderia ser configurada.
Tanto no caso do Paraná quanto no da Paraíba, seria importante uma análise pormenorizada a esse respeito. Não é possível confirmar a existência de uma infraestrutura integrada entre todos os municípios englobados na análise de regionalização. Consequentemente, a titularidade conjunta do estado sobre os serviços de saneamento, considerando toda a área pretendida, pode ser questionada.
O segundo ponto fundamental é que o novo Marco Legal do Saneamento só autoriza a prestação direta por ente da administração do titular. Nesse contexto, o estado nunca exerce a titularidade exclusiva dos serviços de saneamento básico, mas sim em conjunto com os municípios. Nesse ponto, vale salientar que pode haver fragilidade na adoção da tese de uma CESB como órgão da administração municipal, por arrastamento na hipótese de uma operação regionalizada.
Mesmo para municípios que compartilhem a governança com o estado. É que o estado não é (por excelência) o único titular dos serviços; então, é preciso cautela para usar esse argumento com intuito de legitimar a atuação da estatal nos municípios, sem necessidade de prévia licitação.
Ao mesmo tempo, é bem verdade que historicamente muitos municípios não têm um departamento ou uma autarquia estruturados para realizar os serviços de água e esgoto. Em muitas realidades, a CESB é quem faz esse papel. Então, para planos futuros de delegação dos serviços, possivelmente o arranjo passará pela estrutura de ter uma estatal como ferramenta para viabilizar isso.
Muitas vezes as teses jurídicas, por mais contramajoritárias que sejam, endereçam questões de uma realidade que precisa ser acomodada.
Possivelmente a hipótese que está sendo construída se torna legítima à medida em que viabiliza a ponta seguinte — ou seja, no passo que necessariamente estaria por vir: a PPP de atividades hoje realizadas pela estatal. Sua justificativa estaria na vantajosidade frente à necessidade de estruturar processos competitivos no futuro próximo. E esses processos possivelmente seriam dificultados se não existisse a CESB como um veículo.
É que um primeiro elemento que gera preocupação é a relativização dos processos competitivos. A estrutura proposta de operação direta gera arrepios diante do risco de se perder a oportunidade de avaliar, entre os diferentes atores, qual teria as melhores capacidades de investimentos, visando cumprir as metas de universalização do novo marco. O mercado de saneamento foi se desenvolvendo nos últimos anos e é preciso uma concorrência de mercado para promover melhores resultados em termos de financiamento, modicidade tarifária e provisão de infraestrutura física.
E mais, algumas CESBs não foram capazes de comprovar capacidade econômico-financeira para gerir uma operação robusta de saneamento que integre diversos municípios. Então, se não delegarem esses serviços por meio de concessões ou parcerias, podem representar um obstáculo ao cumprimento da meta de universalização dos serviços de água e esgoto prevista no novo Marco Legal do Saneamento.
A conclusão é de que o arranjo jurídico sustentado parece mesmo comportar uma série de questionamentos. Entretanto, não dá para simplesmente desconsiderar a realidade do saneamento no Brasil. Se é bem verdade que é preciso um choque para romper com o histórico de lentidão no atingimento das metas de universalização, ao mesmo tempo que é necessário compreender a dificuldade de os municípios fazerem “o salto” para cumprir com os preceitos de regionalização e de competição.
É inquestionável que o novo marco legal foi importantíssimo para assegurar o arcabouço que prioriza a eficiência do mercado para viabilizar a universalização. É urgente a universalização e o novo marco enfatiza isso e traz instrumentos muito relevantes para pavimentar o caminho até esse objetivo. O fato, entretanto, é a necessidade de trazer ferramental prático para apoiar os municípios a promoverem a prestação regionalizada com eficiência privada. E as PPPs ancoradas em contratos com as CESBs ainda tem sido um caminho “do meio” para isso.
[1] Pontua-se que a estatal tem ações listadas em bolsa, apesar da maioria de seu capital votante ser estatal (Governo do Estado do Paraná).
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