TCU começou o ano com o debate sobre a utilização de câmaras privadas de arbitragem nos contratos de concessão
JÉSSICA LOYOLA CAETANO RIOS
ISADORA COHEN
Originalmente publicado no JOTA
O Tribunal de Contas da União começou o ano de 2021 com uma velha novidade: o debate sobre a possibilidade de utilização de câmaras privadas de arbitragem para resolução de conflitos oriundos de contratos de concessão.
Por mais surpreendente que seja, em especial pela já reconhecida constitucionalidade da Lei de Arbitragem e pelo crescente avanço de nossa legislação administrativa em direção ao reconhecimento da primazia da consensualidade na resolução de disputas público-privadas, ainda paira na Corte de Controle um sentimento de desconfiança e descrédito à utilização da arbitragem e demais métodos alternativos de solução de controvérsias no âmbito da Administração Pública.
No caso específico analisado pela Corte de Contas, o autor da representação questionou a utilização de câmaras privadas de arbitragem para resolução de conflitos em contratos de parceria do setor portuário, sugerindo que, para garantia da participação dos órgãos competentes no processo e construção de uma decisão aderente ao contexto do setor, a arbitragem fosse inserida no âmbito da Advocacia-Geral da União (AGU) ou da própria Agência Nacional Transportes Aquaviários (ANTAQ).
Ao julgar improcedente a Representação, o Plenário do Tribunal de Contas da União reforçou um posicionamento já consolidado no âmbito do Ministério da Infraestrutura, da AGU e da própria ANTAQ, que se manifestaram nos autos unanimemente em favor da arbitragem como mecanismo de resolução de disputas mais célere e eficiente para a solução das disputas envolvendo a Administração Pública, que permite às partes discutirem detalhadamente e em profundidade matérias técnicas e de alta complexidade.
Nessa toada, o Acórdão nº 3.160/2020-Plenário reconhece o importante papel da arbitragem como ferramenta de atração de investimentos privados para projetos de infraestrutura, destacando a legalidade de sua adoção para resolução dos conflitos oriundos dos contratos administrativos, seja em câmaras arbitrais públicas ou privadas.
A criação de câmaras arbitrais públicas para dirimir os conflitos que envolvam o Poder Público suscita uma série de questionamentos que merecem ser discutidos com atenção.
Contudo, para nos atermos ao cerne da discussão submetida ao Tribunal de Contas da União e confrontá-la de forma direta, ao menos no que diz respeito ao argumento de que seria necessária a vinculação dos procedimentos em que a Administração Pública seja parte a instituições públicas de arbitragem, a fim de garantir a devida participação dos órgãos competentes no procedimento e uma maior aproximação entre o julgamento da causa e a complexidades do setor, bastaria dizer que às câmaras de arbitragem públicas não compete julgar o litígio, cumprindo-lhe, essencialmente, atividades de caráter administrativo.
A condução adequada da arbitragem, que permita a ampla participação das partes e a observância de todos os seus direitos e garantias, é função precípua do Tribunal Arbitral, cuja composição, não custa lembrar, é fruto de escolha das próprias partes.
Assim, seja perante uma câmara privada ou pública, são as partes que, conjuntamente, indicarão os árbitros (ou o árbitro único, quando for o caso) que ficarão responsáveis pela condução do procedimento e julgamento da controvérsia, podendo se valerem dos critérios que julgarem mais adequados para tal escolha, dentre os quais a sua experiência profissional e o conhecimento técnico sobre a matéria em discussão.
Em todo o caso, seja qual for o racional adotado pelas partes para indicação dos nomes que comporão o Tribunal e, novamente, independentemente da natureza da câmara arbitral, os árbitros deverão atuar com imparcialidade e independência[1].
Da mesma forma, fosse o procedimento instaurado perante uma instituição pública ou privada, não se confundiria a arbitragem comercial, oriunda da convenção de arbitragem celebrada entre as partes, e a arbitragem regulatória prevista pelo artigo 20, inciso II, alínea “b”, da Lei 10.233/2001.
Como bem indicado pela Corte de Contas, a arbitragem regulatória prevista pela Lei da ANTAQ tem caráter de processo administrativo em que a agência decide internamente um conflito entre entes regulados, cujo resultado não produz coisa julgada entre as partes e pode, naturalmente, ser questionado pela via judicial ou arbitral – neste último caso, quando presente cláusula ou compromisso arbitral válida e confirmada a arbitrabilidade objetiva da matéria em discussão.
Nesse sentido, ainda que a arbitragem fosse conduzida por uma câmara arbitral pública, não poderia o Poder Público ditar isoladamente as regras do procedimento e tampouco a composição do Tribunal Arbitral, indicando seus próprios membros como árbitros.
Para além das questões relativas à imparcialidade, suspeição e impedimento, a escolha dos árbitros, assim como a definição conjunta da instituição e das regras sob as quais o procedimento será conduzido, são elementos indissociáveis da arbitragem enquanto método consensual de resolução de disputas.
Se, de um lado, o acórdão do Tribunal de Contas da União se alinha à legislação vigente e ao entendimento dominante acerca do uso da arbitragem pela Administração Pública e da liberdade de escolha das partes em submeterem o procedimento perante câmaras arbitrais privadas, de outro, introduz uma premissa preocupante e digna de atenção em relação ao que chamou de “fase pós-arbitral”: a de que competiria à Corte de Contas o “acompanhamento do cumprimento da sentença arbitral, verificando, por exemplo, se a sentença favorável ou não à Administração foi fundamentada em padrões mínimos de razoabilidade e se o cumprimento da sentença condenatória de obrigação de fazer ocorre de modo compatível com as disponibilidades e limites orçamentários.”
Não é a primeira vez que o Tribunal de Contas da União se manifesta nesse sentido. No Acórdão 1563-2020-Plenário, ao julgar Representação instaurada sob o fundamento de que o cumprimento da sentença arbitral proferida em favor da Companhia Docas do Estado de São Paulo – CODESP contra o Grupo Libra estaria ameaçada por supostos atos de dilapidação patrimonial perpetrados por empresas do grupo, a Corte afirmou que condenação em sede de arbitragem, muita embora seja irrecusável no âmbito do próprio Tribunal de Contas da União, não afastaria a sua competência para calcular e perseguir um valor diferente, inclusive para mais.
A resistência em reconhecer a vinculação dos órgãos de controle à sentença arbitral se refletiu também na I Jornada de Direito Administrativo, realizada em agosto de 2020, com a rejeição da proposta de enunciado de ID n° 2903, que previa justamente que “as decisões arbitrais equiparam-se a decisões judiciais transitadas em julgado também para fins de sua insindicabilidade pelos órgãos e mecanismos de controle da Administração Pública”.
Ocorre que a Lei de Arbitragem atribuiu exclusivamente ao Poder Judiciário a competência para declarar a nulidade de sentença arbitral, dispondo de um rol taxativo de hipóteses em que a sentença será considerada nula[2].
Diga-se, ainda, que a jurisdição arbitral se equipara à jurisdição estatal, nos termos dos artigos 18 e 31[3] da Lei de Arbitragem, de modo tal que à sentença arbitral foi atribuída força obrigacional e a mesma eficácia da sentença judicial (artigo 515, inciso VII, do Código de Processo Civil), revestindo-se, portanto, dos efeitos e da autoridade da coisa julgada.
A legislação, portanto, não deixa margem para dúvidas quanto à autoridade da sentença arbitral e à sua indistinta força vinculante, não competindo ao Tribunal de Contas da União revisá-la ou modificá-la.
Desse modo, assumir que o Tribunal de Contas da União poderia rever sentença arbitral seria o mesmo que assumir a sua competência para reexaminar decisões judiciais transitadas em julgado, o que não é admissível pelo ordenamento jurídico.
Mais que isso, o êxito de referida tese representaria absoluto risco à eficácia das decisões proferidas no âmbito de arbitragens legal e contratualmente constituídas, atentando contra a segurança jurídica das partes envolvidas, especialmente dos entes privados que contrataram com o Poder Público, inclusive tornando menos atrativos e seguros os negócios firmados com o Poder Público.
[1] Assim estabelece o artigo 13, §6º, da Lei de Arbitragem: No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição.
[2] Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I – for nula a convenção de arbitragem; II – emanou de quem não podia ser árbitro; III – não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei; IV – for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; VI – comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; VII – proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta Lei; e VIII – forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei. Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei.
[3] Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.
JÉSSICA LOYOLA CAETANO RIOS – Graduada em Direito pela UnB. LLM em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London. Advogada em Piquet, Magaldi e Guedes Advogados.
ISADORA COHEN – Fundadora Infracast. Presidente Infra Women Brazil. Sócia ICO-Consultoria. Professora do MBA de PPPs e Concessões da PUC MINAS e do MBA LSE FESP.
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