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ICO Consultoria

O impacto orçamentário das contingências em parcerias público-privadas

Desafios na aplicação dos regramentos existentes para o planejamento e execução contratual

ISADORA COHEN

LUÍSA DUBOURCQ SANTANA

MATHEUS SILVA CADEDO


Originalmente publicado no JOTA


Embora muitas vezes negligenciado no processo de estruturação de projetos de infraestrutura, seu tratamento contábil, fiscal e orçamentário é ponto de fundamental relevância para a sustentabilidade do projeto e, inclusive, do programa estatal de concessões e parcerias como um todo.


Limites de despesas, de endividamento e de recursos fazem parte do dia-a-dia do gestor público, sendo de extrema importância a boa contabilização dos gastos e investimentos públicos. No âmbito das parcerias público-privadas, essas relações ganham especial atenção: a Lei nº 11.079/2004 estabelece, em seu art. 28, uma série de barreiras fiscais a serem observadas para a contratação de novos projetos de parcerias, vinculando os gastos com PPPs a certos percentuais da receita corrente líquida observada pelos entes públicos.


O fato é que o controle efetivo dessas “barreiras” exige grande planejamento e tratamento de todas as despesas que podem ser evidenciadas em uma PPP. Nesse sentido, emerge a preocupação, aqui objeto de reflexões, com a previsão, publicização e estimação de passivos contingentes.


Conquanto represente tema ainda pouco explorado, este artigo buscará demonstrar a necessária atenção a tais contingências, que demandam abordagem sistêmica e integrada ao longo do ciclo dos projetos de infraestrutura.

Passivos contingentes nada mais são do que atos potenciais que podem ou não ocorrer. Consistem, sobretudo, em riscos cuja materialização impacta as contas públicas. Divergem das provisões e das obrigações diretas na medida em que dependem da ocorrência de eventos futuros e incertos ou, mesmo que decorram de eventos passados, que não são prováveis ou não têm seu valor suficientemente estimado.


Precisamente por não se poder estimar o seu impacto no presente, é que tais contingências demandam especial atenção da gestão pública, devendo ser acompanhadas desde a etapa de planejamento das PPPs até o encerramento dos contratos, para evitar o desbalanceamento das contas públicas e a própria execução da parceria.


No Brasil, os passivos contingentes são tratados por uma série de diplomas legais. No âmbito legislativo, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que esta categoria contábil seja discriminada no chamado “Anexo de Riscos Fiscais”, presente nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) divulgadas anualmente por todos os entes da federação.


De forma complementar, a Lei Orçamentária Anual (LOA), também deverá guardar compatibilidade com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, devendo conter reserva de contingência destinada ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos (art. 5º, inciso III, alínea “b”, da LRF).

A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) também edita normas de contabilidade que especificam a forma como os passivos e reservas de contingências devem ser representados no planejamento orçamentário e contábil[1].


De forma resumida, temos que, ao passo em que a LDO buscará mapear passivos contingentes, a LOA trará mecanismo para lidar com tais imprevistos, através da instituição de reserva específica para este fim (reserva de contingência).


Deve haver, assim, um esforço conjugado do gestor público na elaboração das normas orçamentárias, no sentido de tentar antecipar eventuais contingências capazes de influir nas contas públicas, avaliar seu potencial de concretização e o impacto por elas gerado e destacar parcela do orçamento para cobrir tais riscos em caso de materialização.

Em resumo, o que se percebe é a busca do legislador para que os passivos contingentes não gerem “grandes surpresas orçamentárias”. Deve-se tentar quantificar, com a maior realidade possível, as saídas incertas do caixa do Tesouro Público, reservando-se parte do orçamento estatal para cobrir essas eventuais despesas.


Entretanto, inúmeras questões surgem nesse ponto: como fazer isso? Que critérios adotar para prever o nível de contingenciamento de recursos que se faz necessário? Que elementos podem ser usados como método de quantificação de contingências?


E mais: para além do momento da elaboração do orçamento, como assegurar que os passivos contingentes identificados serão continuamente acompanhados, a partir de critérios sólidos e efetivos, para avaliar a eventual necessidade de convertê-los em provisões ou obrigações diretas?


O fato é que os regramentos previstos, seja na Lei de Responsabilidade Fiscal ou nas normas da Secretaria do Tesouro Nacional, são silentes sobre o assunto. Não há um método claro de quantificação ou de estimação de passivos e reservas de contingência, especialmente no que se refere às parcerias público-privadas, cujo impacto orçamentário perpassa décadas e governos.


É de se notar que, mesmo em entes com programas de concessões avançado, como o estado de São Paulo, o tratamento dado às contingências é meramente qualitativo em relação às parcerias público- privadas, não havendo indicações de estimativas de efetivação, ou valores referentes aos passivos contingentes.


Como consequência, caso os riscos associados a estes passivos mapeados se materializem, o Estado se verá diante de uma obrigação pecuniária repentina para a qual não se planejou para pagamento (sem previsão nas reservas de contingência) e nem mesmo detém mecanismos para acompanhar o aumento do grau de probabilidade de sua materialização.


O ideal, nos termos do que os próprios dispositivos legais trazidos indicam, seria haver o estudo de uma relação de proporcionalidade. Quanto maior for a probabilidade de ocorrência de um risco e da estimativa de valor a ser suportado pelo ente público, maior deve ser o contingenciamento de recursos, de forma que ambos os elementos guardem uma relação de proporcionalidade. Isso permitiria ao Estado ter um planejamento orçamentário mais realista, evitando o rearranjo inesperado de recursos decorrentes da concretização de passivos contingentes.

Demais disso, colocaria ênfase em aspecto ainda pouco valorizado: o acompanhamento constante dos contratos administrativos para aferir se o planejamento se mantém ou necessita de alteração, endereçando novos desafios, inerentes à complexidade social subjacente aos contratos, que eventualmente alterem as probabilidades estimadas.


Para melhor ilustração, podemos pensar em um exemplo concreto. Imagine-se que, em um contrato de parceria público-privada, o Poder Concedente assume parte do risco de não efetivação da demanda prevista, garantindo certo fluxo mínimo de receitas ao concessionário. Para estimar o contingenciamento necessário, frente a este risco, pode-se associar certos percentuais de variação de demanda com a probabilidade do risco se efetivar.

Com isso, poder-se-ia fazer inferências do seguinte modo: caso haja uma variação de 40% na demanda, haverá uma probabilidade 95% da assunção do risco pelo poder público se efetivar, gerando determinada proporção de contingenciamento que responda ao possível pagamento calculado com base nesses dados.

Materializado o risco, bastará ao Estado se valer das reservas anteriormente previstas. Apesar dos valores reais poderem ser diferentes das estimativas, o impacto fiscal observado (de um gasto orçamentário inesperado) seria menor.

Entretanto, como exposto, não há critérios ou recomendações, no Brasil, que indiquem ao gestor a forma de fazer inferências desse tipo. Não há métodos que nos permitam relacionar a possibilidade de materialização de riscos com estimação de reservas de contingência específicas.


Uma alternativa seria estimular o que já vem sendo testado em outros países, adotando a gestão e acompanhamento de dados referentes à execução contratual das concessões como uma aliada do planejamento fiscal e orçamentário dos passivos contingentes.


Nesse sentido, com base no Estudo do Banco Mundial “How do Countries Measure, Manage, and Monitor Fiscal Risks generated by public-private partnerships”[2], destaca-se o exemplo do Chile, que adota a chamada “simulação de Monte Carlo” para estimar a probabilidade de efetivação de riscos e dos pagamentos futuros realizados ao ente privado.


Essa simulação nada mais é do que um programa computacional que avalia a possibilidade de certos riscos assumidos pelo Poder Público se efetivarem, guardando relação direta com os passivos contingentes. O programa é alimentado por uma base de dados associados a estes riscos, como a demanda e oferta do serviço oferecido, bem assim as estimativas de suas curvas de crescimento ou decrescimento.


Daí porque o constante acompanhamento contratual se mostra tão relevante: a materialização de eventos capazes de afetar as contingências em parcerias público-privadas serve não apenas para o equacionamento de uma avença especificamente considerada, mas fornece dados capazes de alimentar plataformas de gestão de riscos para todo o programa de concessões estatal, tornando-o mais assertivo e eficiente.


Em tempos de pandemia, por exemplo, tal programa poderia se valer de dados da demanda de serviços constatada em determinado período para estimar os índices futuros de demanda, permitindo a previsão de riscos que podem vir a ser suportados pelo Poder Concedente, bem como suas conversões em possíveis pagamentos futuros.


Em outras palavras, poderíamos evoluir para a elaboração de um “orçamento inteligente” a partir da coleta periódica de dados que permitam estimações probabilísticas computacionais, facilitando, também, efetivos contingenciamentos que guardem proporção com os riscos assumidos pelo Poder Público, conforme previsões da matriz de riscos contratual.


Este artigo não espera trazer todas as respostas para os desafios apresentados, mas contribuir com reflexões e discussões futuras que enderecem o adequado tratamento das contingências nas contratações públicas e confiram aos gestores públicos elementos para o planejamento e gerenciamento contratual.


Considerando não estarmos no estágio de amadurecimento institucional que confira automaticidade à execução orçamentária, podem-se pensar em mecanismos para, no bojo dos próprios contratos de PPP, encontrar fontes de receitas para equacionar riscos e passivos, sem a dependência de reservas orçamentárias genéricas – que, por sua própria natureza, não são capazes de conferir respostas direcionadas à realidade de cada avença.


Nesse passo, conferiria segurança à execução orçamentária da Administração Pública a previsão de receitas específicas nas parcerias público-privadas que funcionem como colchão de reservas para fazer frente à eventual materialização de uma contingência, mitigando seus impactos a partir de mecanismos intracontratuais.


Tendo em vista a ausência de critérios objetivos previstos em lei para o equacionamento desses passivos – e talvez sequer seja este o instrumento adequado para tanto, dada a crescente complexidade social e a criatividade que necessariamente rege o processo de modelagem de projetos, em oposição à estanqueidade das normas –, a previsão de mecanismos internos em cada PPP talvez se mostre a saída mais adequada para a gestão das contingências contratuais.


** Este artigo é fruto dos trabalhos desenvolvidos no Working Paper intitulado “Passivos contingentes em projetos de concessão e parcerias público-privadas”, de autoria de Isadora Cohen, Luísa Dubourcq, Jéssica Loyola Rios e Matheus Cadedo, produzido no âmbito de contrato firmado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Fundação Getúlio Vargas, sob a coordenação da professora Juliana Palma e do professor Gesner Oliveira.


 

[1] Citam-se, nesse sentido, o Manual de Contabilidade Aplicado ao Setor Público, 8ª Edição, e Manual de Demonstrativos Fiscais, 11ª edição.

[2] World Bank Group. How do Countries Measure, Manage, and Monitor Fiscal Risks generated by public-private partnerships. September 2014.


 

ISADORA COHEN Fundadora Infracast. Presidente Infra Women Brazil. Sócia ICO-Consultoria. Professora do MBA de PPPs e Concessões da PUC MINAS e do MBA LSE FESP.

LUÍSA DUBOURCQ SANTANAEspecialista em Direito Administrativo e mestre em Direito do Estado e Regulação pela Universidade Federal de Pernambuco. LLM em Regulação e Infraestrutura pela Universidade Católica de Pernambuco (em curso). Advogada.

MATHEUS SILVA CADEDOGraduando pela FGV Direito SP. Aluno da Escola de Formação Pública (EFp) da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).

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