Legislação demanda do gestor público uma série de cuidados para contemplar dispêndios orçamentários
ISADORA COHEN
LUÍSA DUBOURCQ SANTANA
MATHEUS SILVA CADEDO
Originalmente publicado no JOTA
As parcerias público-privadas inauguraram no ordenamento brasileiro a possibilidade de realização de projetos até então inviáveis sob a sistemática das concessões comuns, empreitadas ou contratos de prestação de serviços tradicionais, contemplando a realização de vultosos investimentos em infraestrutura que, por isso mesmo, demandam longa vigência contratual para a sua amortização. Precisamente porque importam em grande desembolso de recursos pela administração pública por prazo alargado, a legislação referente às PPPs demanda do gestor público uma série de cuidados para contemplar os dispêndios na legislação orçamentária, sujeitando tais avenças a controles fiscais e de endividamento estatal.[1]
Desse modo, busca-se assegurar que o Poder Público terá recursos suficientes para honrar com as obrigações contraídas, conferindo à iniciativa privada a segurança necessária para prover o investimento contratado com a justa expectativa de ressarcimento no prazo avençado. Pelas mesmas razões – realização de investimentos consideráveis, cuja amortização é diferida no tempo – a Lei nº 11.079/2004 previu, em seu art. 8º, que as obrigações pecuniárias contraídas pela administração pública em contrato de parceria público-privada poderão ser objeto de garantias públicas, definidas contratualmente a partir das modalidades permitidas por lei e executáveis em caso de inadimplemento da contraprestação devida pelo parceiro público.
É certo, contudo, que nem sempre a prática acompanha a teoria e momentos de instabilidade são corriqueiros, demandando do gestor público criatividade e jogo de cintura para rever previsões e programações orçamentárias em caso de queda na arrecadação ou aumento de despesas, motivadas por momentos de crise interna ou externa. Mostra-se compreensível e, de certa forma, natural que a administração pública realize eventuais contingenciamentos e cortes no orçamento público diante de restrições e limitações fiscais vivenciadas, para equacionar os desafios que se apresentem. No entanto, deve-se ter cautela quando da escolha das rubricas e fontes de recursos que serão reduzidas, para que não se gere efeito inverso ao pretendido com o contingenciamento.
Trazendo a discussão para um exemplo concreto, suponha-se um projeto de PPP para a construção e operação de unidades prisionais ou de hospitais públicos, por exemplo, que preveja uma remuneração específica ao concessionário, destinada a amortizar os investimentos realizados e remunerar pelos serviços prestados mês a mês. Suponha-se, ainda, que o referido contrato preveja uma garantia pública à contraprestação pecuniária devida pelo Poder Concedente, a exemplo de um seguro garantia ou do penhor de cotas de fundo garantidor. Imagine-se, por outro lado, que o Secretário da Fazenda ou de Planejamento do estado ou município responsável pela PPP em questão promova, alegando dificuldades financeiras, um corte indiscriminado de 30% nos gastos do ente, abrangendo, inclusive, as despesas destinadas à remuneração do parceiro privado na parceria. Apesar de, à primeira vista, o exemplo parecer uma decisão razoável ou mesmo impessoal, dado tratar-se de corte linear, é preciso bastante cuidado para aferir se esta medida é a que, no caso concreto, se mostraria mais adequada e geraria maior valor para os recursos públicos globalmente considerados.
Com efeito, se não adotada com cautela, a medida de contingenciamento de recursos pode, em verdade, tornar o cenário mais oneroso ao Erário, seja pelo impacto institucional que um corte em despesas destinadas ao investimento e remuneração do parceiro privado gera, seja pela afronta aos dispositivos legais que tratam as contraprestações públicas em PPPs como efetivas obrigações, certas e exigíveis, ou, ainda, pelo custo que o ente público terá para recompor a garantia contratual.
Em outras palavras, direta e indiretamente, a não execução do orçamento ou previsão orçamentária para o adimplemento das obrigações em parcerias público-privadas pode, em verdade, ser mais custosa, gerando gastos adicionais ao invés de economias e agravando, com isso, as dificuldades de caixa que as medidas de corte ou contingenciamento buscam remediar.
Nos contratos de PPP que prevejam mecanismos de garantia pública, o corte no pagamento das contraprestações apenas causaria um breve diferimento no tempo do cumprimento desta obrigação, mas não o seu cancelamento, sendo frequente que os instrumentos contemplem a obrigação de recomposição da garantia em caso de sua execução. Além disso, a depender da modalidade de garantia adotada, a sua execução pode até mesmo aumentar o seu custo, em razão do incremento de risco para o segurador.
Nesse passo, muitas vezes, os atores encarregados da estruturação contratual se perdem no debate quanto à escolha dos melhores formatos de garantia, alçando-o à categoria de aspecto mais relevante da modelagem a fim de garantir a atratividade do projeto. Longe de se pretender afastar a importância do tema, é certo, por outro lado, que o real foco da preocupação de todas as partes envolvidas deveria ser a estruturação de mecanismos de pagamento robustos que, por si sós, já sejam capazes de conferir a segurança necessária para o empreendimento. Não se pode olvidar, nesse passo, que, mesmo quando as garantias são executadas de forma automática e célere (cumprindo com maestria, portanto, seu papel), o simples fato de ter sido necessária a execução de uma garantia coloca à prova a capacidade de pagamento e a credibilidade do Estado.
Há, ademais, um risco institucional decorrente deste corte de despesas, comprometendo a solidez e confiança do programa de parcerias e, em última análise, aumentando o custo potencial dos projetos futuramente licitados. Deixar de cumprir, com plenitude, as obrigações contratuais relacionadas aos projetos de PPP pode impactar em sérios riscos reputacionais ao programa estadual de parcerias, o que se reflete no incremento de custos para realização de novos projetos ou mesmo pela redução do universo de potenciais interessados em empreendimentos futuros, acarretando uma tendência de aumento no valor estimado dos contratos em razão da reduzida competitividade. Se o Estado não cumpre suas obrigações a tempo e modo, os riscos de investir capital privado em concessões patrocinadas e administrativas se torna maior, aumentando as taxas de juros relativas ao financiamento das parcerias. Isso também pode representar expectativas de maiores taxas de investimento-retorno para suplantar os riscos de não pagamento, entre diversas outras externalidades financeiras.
Ainda quanto aos reflexos institucionais e reputacionais decorrentes dos cortes de recursos destinados ao custeio de PPPs, vale destacar que o setor privado conta com inúmeros índices objetivos de avaliação dos riscos de inadimplência do governo. Um exemplo são as notas dadas pelo “Fitch Ratings” através do chamado Issuer Default Rating[2] (Probabilidade de Inadimplência do Emissor). Índices como esses também podem ser discriminados em avaliações setoriais, pelos entes privados, que os consideram antes de decidirem investir nos programas de determinado ente público (nos quais se incluem as parcerias). Deixar de arcar com a integralidade das obrigações previstas nos atuais contratos de parcerias, portanto, pode ocasionar significativa piora dessas avaliações de mercado, subsidiando o encarecimento da concessão de crédito ao Estado e fazendo com que futuras parcerias ocasionem maior ônus financeiro aos cofres públicos.
Registre-se, ainda, que a submissão dos gestores públicos aos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal funciona como meio para coibir – ou, ao menos, desincentivar – o corte indistinto de previsões orçamentárias destinadas aos programas de parcerias do ente. Isso porque tais previsões estão não ao bel-prazer do gestor para usá-las ao sabor do momento, mas a serviço da credibilidade dos pagamentos da administração pública. Em outras palavras, a solidez de um programa de parcerias não reside na qualidade das garantias costumeiramente utilizadas, posto que estas pressupõem a ocorrência de um default contratual.
Condutas assemelhadas, que promovem cortes de recursos destinados ao custeio de PPPs, sem considerar que tais avenças trazem regras muito claras quanto aos investimentos e sua amortização, acaba por aumentar o custo do dinheiro, em prejuízo da própria administração pública. Sobre o tema, temos inclusive defendido, em oportunidades anteriores, que o contrato de parceria público-privada deve ser constantemente revisitado para verificar, no curso de sua execução, se o estudo de Value for Money que motivou a escolha do gestor pelo modelo de PPP permanece válido – e, certamente, medidas de contingenciamento de recursos que importem no aumento do custo do capital influenciarão nesta análise.
Ao fim e ao cabo, na análise de Value for Money para a contratação de um projeto, há grande peso na definição das garantias, porque representam mais um montante reservado para compromisso que se funda na simples percepção de que o Poder Público pode não honrar seus compromissos. Desse modo, alimentar a percepção de que é mais importante a definição da garantia contratual do que assegurar mecanismos de pagamento automáticos, líquidos e seguros pode ter o nefasto efeito de presumir como regra aquilo que deveria ser absolutamente excepcional: os atropelos na execução contratual que, por fatores alheios ao controle do Poder Concedente, demandam a reprogramação de pagamentos. Esta equivocada concepção torna o programa de parcerias mais custoso, o rating do ente tende a diminuir e a percepção de risco para o investidor aumenta, repercutindo não apenas no contrato de PPP especificamente considerado, mas em todo o programa.
Não se ignora os múltiplos desafios enfrentados cotidianamente pelos gestores públicos, especialmente em um país que, como o Brasil, parece ter vivido mais momentos de crise que de relativa estabilidade. E decisões como as que promovem o contingenciamento indiscriminado de recursos nas PPPs podem, à primeira vista, parecer inofensivas e justificáveis. No entanto, no momento de modelagem e execução dos contratos de parcerias público-privadas, muito mais importante que centrar a análise nos mecanismos de garantia que conferem maior automaticidade e liquidez é, efetivamente, assegurar que as obrigações e os meios de pagamento da contraprestação pública serão igualmente automáticos e líquidos, não sujeitando o parceiro privado às inseguranças e vicissitudes do contexto político e econômico do momento. A estabilidade econômica e contratual advém, ainda que não isoladamente, também da robustez de um programa de parcerias capaz de entregar infraestrutura e serviços ao Poder Público e aos usuários, a partir de contratos bem estruturados, previsíveis e – sobretudo – adimplidos.
[1] O tema dos reflexos orçamentários nas PPPs foi objeto de recente análise nesta Coluna INFRA: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/o-impacto-orcamentario-das-contingencias-em-parcerias-publico-privadas-22012021.
[2] Disponível em: https://www.fitchratings.com/research/pt/international-public-finance/fitch-afirma-ratings-bb-aa-bra-do-estado-de-sao-paulo-perspectiva-estavel-18-07-2018. Acesso em 21 de janeiro de 2020.
ISADORA COHEN – Fundadora Infracast. Presidente Infra Women Brazil. Sócia ICO-Consultoria. Professora do MBA de PPPs e Concessões da PUC MINAS e do MBA LSE FESP. LUÍSA DUBOURCQ SANTANA – Especialista em Direito Administrativo e mestre em Direito do Estado e Regulação pela Universidade Federal de Pernambuco. LLM em Regulação e Infraestrutura pela Universidade Católica de Pernambuco (em curso). Advogada. MATHEUS SILVA CADEDO – Graduando pela FGV Direito SP. Aluno da Escola de Formação Pública (EFp) da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
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