O usuário como ator na execução contratual e destinatário das medidas fiscalizatórias
Isadora Cohen
Felipe Schwartz
Matheus Cadedo
Publicado originalmente no JOTA
No contexto das concessões de serviços públicos, um assunto recorrente quando se fala em fiscalização diz respeito à atuação da concessionária no cumprimento do objeto contratual.
Entretanto, além do controle das atividades e processos da companhia privada prestadora dos serviços públicos[1], expressamente exigido pela Lei de Concessões, há um aspecto interessante que toca na fiscalização do usuário. Isto é, as hipóteses de os usuários cometerem fraudes, atrasarem o pagamento de taxas, tarifas ou mesmo da fatura ou se omitirem de alguma obrigação.
Esta relação com o usuário não pode ser esquecida. Não por outra razão, a doutrina fala em “efeitos trilaterais da concessão”, ou seja, como as relações contratuais abrangem e impactam não apenas as partes contratantes – Poder Concedente e concessionária – mas também (e, por que não, sobretudo) o usuário.
Nesse contexto, temos que a atuação do usuário, individualmente considerado, impacta e, por vezes, compromete a execução da concessão. Em setores com consideráveis interfaces existentes entre o usuário, o Poder Concedente e a concessionária, tal debate é considerado como de grande relevância, citando-se, como exemplo, o saneamento básico.
Neste setor, todo o investimento em infraestrutura pode repercutir, de maneira direta, na prestação do serviço público e, como não poderia deixar de ser, na composição e posterior cobrança da tarifa. Por conseguinte, a má utilização da infraestrutura disponibilizada, ainda que por um grupo reduzido de usuários, pode tornar a execução do contrato ineficiente e/ou mais oneroso para toda a cadeia dos beneficiários dos serviços concedidos.
Isso significa que as possíveis irregularidades dos usuários podem gerar obstáculos à prestação do serviço, a exemplo do desperdício de recursos (como água), com relevantes impactos ambientais, e prejuízos financeiros à concessionária (devido a falhas nas medições). Além disso, deve-se notar a existência de usuários clandestinos, que não apenas prejudicam a concessionária, mas, sobretudo, causam desequilíbrios para todo o sistema.
Com isso, é evidente que, ao fim e ao cabo, são os próprios usuários que saem prejudicados. Em suma, defende-se , que uma prestação de serviços públicos de qualidade pela concessionária depende do usuário e, mais especificamente, da fiscalização destes.
No entanto, em dissonância com a sua relevância empírica, nem a legislação, nem os contratos, disciplinam de maneira clara tal matéria.
Analisando-se a prática contratual, são poucos os instrumentos que, atualmente, disciplinam a relação entre concessionária e usuário no tocante à fiscalização. O contrato da CEDAE-RJ[2], por exemplo, coloca a “função fiscalizatória e sancionatória sobre os usuários do serviço público” como competência da agência reguladora.
Contudo, em outros projetos já é possível enxergar algum avanço, demostrado através de certas preocupações com as relações de fiscalização do usuário. É o caso, por exemplo, do contrato do município catarinense de Blumenau, no qual a concessionária Foz de Blumenau, cuja acionista majoritária é a BRK Ambiental[3], é autorizada a acompanhar e apoiar o Poder Concedente na realização dos processos de medições e cobranças dos usuários.
Em outro projeto, da CASAL-AL[4], o contrato avança e coloca a leitura de hidrômetros, a fiscalização dos usuários, a cobrança e a gestão comercial como serviços complementares e de responsabilidade da concessionária.
Já no âmbito normativo, a Lei Federal nº 11.445/2007 traz alguns dispositivos que estabelecem uma certa regulação para os usuários do serviço público. Há uma importante diretriz, no art. 40, que toca em hipóteses de interrupção dos serviços por parte do prestador.
Por exemplo, são abarcados casos de o usuário impedir, após ter sido previamente notificado, a instalação de dispositivo de leitura de água consumida e a possível manipulação indevida pelo usuário de qualquer tubulação, medidor ou outra instalação do prestador.
Mas, aqui, se impõe a questão: qual a extensão e a força do poder da concessionária em fiscalizar e, eventualmente, penalizar esse cliente que desvirtua o serviço? O debate abarca, de igual modo, o enforcement e o Poder de Polícia do parceiro privado na relação com o usuário.
É importante destacar, nessa seara, que a jurisprudência consolidada nos Tribunais é no sentido de que a aplicação das medidas sancionatórias e o exercício do Poder de Polícia no âmbito da prestação de serviços públicos não podem ser desempenhadas diretamente por particulares privados ou sociedades de economia mista[5].
Assim, a concessionária não pode, por si, aplicar multas e sanções aos clientes. Talvez por esta razão, muitos contratos nem chegam a abarcar esta possibilidade. Todavia, conforme exposto acima, toda a atuação dos usuários impacta de maneira considerável a prestação do serviço público, de forma que restringir qualquer atuação fiscalizatória da concessionária prejudica o próprio serviço público e, no limite, o usuário.
Seria interessante, portanto, possibilitar que não apenas o Poder Concedente – seja por meios próprios, seja por terceiros – fiscalize as possíveis ilicitudes e irregularidades dos usuários, mas, também, as concessionárias.
Vale sublinhar, a título ilustrativo, as normas estabelecidas pelo contrato de Blumenau acima exemplificado. Nesse caso, a concessionária tem autoridade para auxiliar e apoiar o poder público para a realização de uma fiscalização eficiente.
Nesse sentido, pode ser fundamental que o privado, se valendo de suas expertises e experiências próprias e por todo o seu conhecimento do serviço prestado, preste todas as atividades de apoio e prevenção, com o objetivo de coibir ilicitudes e irregularidades, bem como aperfeiçoar a prestação do objeto contratual. Com isso, unem-se esforços em prol da continuidade do serviço público, da modicidade tarifária e da eficiência contratual, beneficiando todos os agentes envolvidos na cadeia de serviços concedidos.
Sendo os usuários peça fundamental na engrenagem de qualquer projeto de concessão, deve-lhes ser conferida a devida importância, o que abrange a necessidade de adequada e eficiente fiscalização da sua interação com o serviço e com a infraestrutura concedida, para que se assegure a perenidade e a sustentabilidade da concessão.
Para tanto, conferir mecanismos contratuais para que a concessionária atue em auxílio e apoio ao Poder Concedente na fiscalização desta relação – respeitados os limites quanto à delegação do Poder de Polícia – é medida que aprimora a prestação dos serviços públicos, beneficiando, enfim, o próprio usuário, podendo ser ponto de importante atenção nas concessões de serviços públicos, como no exemplo do setor de saneamento, aqui trazido.
[1] Por exemplo, para ilustrar, a Lei de Concessões (Lei Federal nº 8.987/1995), coloca, em seu art. 3º, a fiscalização do parceiro privado como um dos pontos nevrálgicos das concessões e permissões. A norma estabelece, no mesmo artigo citado, o papel de cooperação dos usuários do serviço na fiscalização da atuação da concessionária envolvida. É justamente sobre os usuários que reside um outro âmbito da fiscalização.
[2] Trata-se do art. 21.1.11 do Contrato Minuta de Contrato de Concessão dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Mais detalhes podem ser vistos em http://www.concessaosaneamento.rj.gov.br/documentos/grupo2/Contrato-de-Concessao.pdf. Acesso em 05.08.2021.
[3] Mais detalhes podem ser acessados em: https://www.brkambiental.com.br/uploads/8/21-regulacao-pdf/blumenau/contrato-de-concessao.pdf. Acesso em 05.08.2021.
[4] Mais detalhes podem ser acessados em: https://www.casal.al.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/ANEXOVMINUTADECONTRATO12.5.141.pdf. Acesso em 05.08.2021.
[5] Cita-se, como exemplo, o Recurso Extraordinário 633782, que toca na aplicação de multa de trânsito por sociedade de economia mista.
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