Não se sabe o que o consensualismo para resolver problemas da administração pode custar à ordem jurídico-formal
Isadora Cohen
Enzo Rizetto
Publicado originalmente no JOTA
A reforma de 2018 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) deu força ao debate do consensualização no direito, em específico para a administração pública: diante de sucessivos descumprimentos de sanções administrativas a solução realista desenhada para casos de irregularidade ou situação contenciosa, visando a promoção da eficiência e a eliminação de insegurança jurídica, foi a previsão da adoção de instrumentos consensuais pelo administrador[1].
Há, portanto, fragmento de um fenômeno de construção de uma “administração de resultado” que esteja firmada na negociação e em parâmetros econômico-empresariais em detrimento de uma administração autoritativa e jurídico-formal ligada ao cumprimento estrito dos componentes da lei[2].
As ideias tratadas acima foram sintetizadas no dispositivo do art. 26 da LINDB, cuja redação objetiva dirimir os conflitos na aplicação do direito público por meio da celebração de compromissos, desde que sejam proporcionais, eficientes, não desonerem permanentemente deveres e deixem claras as obrigações das partes[3]. A norma preconiza que a eficiência administrativa é precedida por mecanismos dinâmicos de concerto entre público e privado, diretriz verificada no arranjo conferido ao conflito em torno da concessão da rodovia BR-163/MT: após uma série de inadimplementos da concessionária e a frustração com o mecanismo trabalhoso da relicitação, a solução encontrada pelos operadores da concessionária Rota do Oeste (CRO), até então da Odebrecht, foi vender seu controle acionário da SPE para a MT PAR, companhia do governo estadual, sob fiscalização da ANTT e, posteriormente, com aval do TCU; de modo que o caso parece ter comprovado que existe uma alternativa consensual e eficiente para as concessões de infraestrutura com problemas de operação[4].
A solução tratada aqui como o paradigma pioneiro de resoluções consensuais de conflitos em concessões com problema de inadimplemento veio por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a concessionária que alterava as bases do contrato original firmado junto à ANTT e homologado pelo TCU, em acórdão publicado no âmbito do processo 019.064/2022-5 que, dentre outras exigências, previa o saneamento da dívida da CRO com os credores, a extinção do passivo regulatório, o aumento do prazo na concessão e a demanda de novo aporte financeiro pela concessionária; itens cruciais para a eficiência da operação que, após a repactuação do contrato, recuperou mais de 300 km da rodovia com investimentos de R$ 300 milhões[5].
Ao longo do seu voto, o Ministro do TCU Bruno Dantas destacou o quão inédita foi a opção pelo uso do TAC em vez dos mecanismos engessados – como a relicitação e a encampação – mas também o quão importante foi a solução para satisfazer o interesse público[6]. Há, no entanto, uma pontuação importante feita pelo Ministro que pode explicar o que tornou a resolução da controvérsia tão célere: o órgão controlador só viabilizou o TAC por causa do caráter público da companhia que assumiria o contrato, ressalvando o uso desse precedente.
Além disso, o voto não encara o maior dilema que acompanha a solução: o risco moral contido no concerto da administração. Como aplicar, portanto, repactuações de concessão sem criar uma jurisprudência que estimule “aventureiros” a entrar nos setores sabendo que poderão ter o contrato renegociado? Ainda que tenha feito menção ao art. 26 da LINDB e referenciado o art. 27 da Lei 8.987/1995 para apontar a previsibilidade legal da transferência, o Ministro resolveu a questão por meio da Lei 12.371/2011, a qual dispõe sobre o Sistema Nacional de Viação, afirmando que a União teria competência para doar trechos de rodovias federais, evitando, assim, tratar do risco moral explicitamente.
Por outro lado, em decisão recente do mesmo órgão, após consulta proposta pelo dos Ministérios dos Portos e Aeroportos em conjunto com o Ministério dos Transportes, processo 008.877/2023-8, cujo objeto era voltado ao entendimento de quais hipóteses prevalecia o caráter irrevogável do processo de relicitação, os ministros acordaram que há respaldo normativo para o encerramento dos processos de relicitação para a articulação de uma solução consensual para o contrato (a sua repactuação), dessa vez fazendo menção distinta do art. 26 da LINDB, reiterando entendimento compartilhado pelo jurista Marçal Justen filho[7]. A constituição do compromisso amigável entre as partes não vem, no entanto, livre de encargos, sendo necessário o estabelecimento de um cronograma para o cumprimento das obrigações e a comprovação da vantajosidade da opção consensual.
Pode-se inferir, tendo em vista a decisão, algum avanço na disposição do órgão controlador em tolerar soluções consensuais na administração pública, ainda que sem perder de vista os riscos morais envolvidos nessas formas de compromisso — seja o “incentivo para aventureiros” ou a falta de processo competitivo. Não só isso, as novas ideias ligadas ao consensualismo parecem ter motivado o tribunal a criar A Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) e chegaram até mesmo no Ministério dos Transportes, que, por sua vez, editou uma portaria que dispõe sobre a readaptação e otimização dos contratos de concessão[8].
Por fim, vale perceber como a raiz fundante de eficiência contida no art. 26 da LINDB para propor concertos entre o público e o privado foi capaz de deixar para trás, pelo menos aos olhos do controlador, ainda que com ressalvas, a noção de administração rígida com o formalismo jurídico, tendo como caso ilustrativo de sua aplicabilidade o da BR/163-MT. Ainda não se sabe o que o consensualismo para resolver problemas da administração pode custar à ordem jurídico-formal, mas é possível ter certeza de algo: a eficiência faz bem aos problemas urgentes.
[1] GUERRA, Sérgio. DE PALMA, Juliana Bonacorsi de. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 135-169, nov. 2018. pg. 138. [2] Ribeiro, Mauricio Portugal. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011. Citação de Luciano Iannota apud Alexandre Santos de Aragão. Prefácio, página xxx. [3] BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Art. 26: “Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. [4] Ver em AgênciaInfra: iNFRADEBATE:Venda assistida como caminho alternativo à relicitação de concessões federais em dificuldade. Marcato, Fernando. Cohen, Isadora Chansky. 7 de Junho de 2023. Disponível em: <https://www.agenciainfra.com/blog/venda-assistida-como-caminho-alternativo-a-relicitacao-de-concessoes-federais-em-dificuldade/>. [5] Ver em AgênciaInfra: Com projeto agressivo, nova concessionária da BR-163/MT busca recuperar credibilidade após repactuação. Dimmi Amora. 8 de setembro de 2023. Disponível em: <https://www.agenciainfra.com/blog/com-projeto-agressivo-nova-concessionaria-da-br-163-mt-busca-recuperar-credibilidade-apos-repactuacao/>. [6] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Tribunal Pleno. Acórdão 2139/2022-PL, Rel. Min. Bruno Dantas. 30/9/2022. Voto Min. Bruno Dantas pg. 18. [7] Ver em AgênciaInfra: iNFRADEBATE: Aeroportos – o possível consenso para mudança de rumo. Justen, Marçal Filho. Pereira, Cesar. 17 de fevereiro de 2023. Disponível em: <https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-aeroportos-o-possivel-consenso-para-mudanca-de-rumo/>. [8]BRASIL. Ministério dos Transportes. Portaria nº 848/2023.
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