Desafios ao reequilíbrio econômico-financeiro em razão da inclusão de novos investimentos em concessões
Por: Isadora Cohen e Daniel Silva Pereira. Publicado originalmente no JOTA
A execução de contratos de concessão envolve diversas modificações ao longo do tempo, principalmente no que diz respeito à incorporação de novos investimentos. Via de regra, essas alterações têm seu impacto sobre a equação econômico-financeira recomposta em sede de procedimento específico de reequilíbrio econômico-financeiro, no qual é avaliado a extensão de seu impacto e a melhor forma de restauração da relação inicial entre os encargos e as vantagens assumidas pelas partes.
Nos contratos mais recentes, essa recomposição tem sido realizada majoritariamente através da metodologia de Fluxo de Caixa Marginal (FCM), que vem, gradualmente substituindo o uso da Taxa Interna de Retorno (TIR) projetada no Plano de Negócios, ao menos nos eventos relacionados à inclusão de novos investimentos.[1]
O FCM visa ajustar o contrato com base nos impactos financeiros gerados por eventos específicos ao longo da execução contratual.[2] Dessa maneira, sua aplicação permite que cada novo investimento ou evento de desequilíbrio seja analisado de forma isolada por meio da criação de um fluxo de caixa paralelo, chamado marginal. Isso torna possível individualizar as receitas e despesas de cada investimento e isolar seu impacto em relação à concessão como um todo.
Além disso, ao contrário da TIR, que gerava distorções em contratos de concessão ao utilizar premissas estáticas do Plano de Negócios original, o FCM ajusta o contrato às condições reais do mercado no momento do desequilíbrio, privilegiando o contexto econômico do momento em que é tomada a decisão do novo investimento[3][4].
Esse aspecto, especificamente, é de suma importância, pois, não raramente, os novos investimentos são realizados muitos anos depois do início da vigência do contrato, o que torna possível que tenha havido substanciais mudanças no contexto macroeconômico do projeto e justifica a observância dos custos atuais, e não os pretéritos.[5]
A correta definição da Taxa de Desconto nesse contexto desempenha um papel central, uma vez que é ela que vai refletir as condições econômicas e financeiras vigentes no momento da realização do novo investimento. A Taxa de Desconto representa, em última análise, o custo de oportunidade do capital no mercado à época da execução do investimento, garantindo que os fluxos de caixa projetados para o reequilíbrio econômico-financeiro estejam alinhados com a realidade financeira do período.
Essa taxa é especialmente relevante porque, ao descontar os fluxos de receitas e despesas marginais, ela calcula o valor presente líquido dos investimentos, permitindo que os valores futuros sejam ajustados para o presente com base no cenário econômico do momento. Se a taxa de desconto não refletir adequadamente o contexto econômico atual, pode ocorrer uma super (ou sub) valorização dos investimentos realizados, o que distorceria a análise do fluxo de caixa marginal e, consequentemente, o equilíbrio do contrato.
Por exemplo, em um cenário de alta inflação ou aumento nas taxas de juros, utilizar uma Taxa de Desconto desatualizada, estabelecida em momentos anteriores e mais favoráveis, poderia beneficiar indevidamente uma das partes. Isso geraria uma recomposição que não reflete as condições reais do mercado, comprometendo a justiça e equidade no contrato. Da mesma forma, uma Taxa de Desconto inadequada pode penalizar o concessionário, se as mudanças macroeconômicas tornarem os custos do capital mais elevados do que o inicialmente previsto.
Na prática, entretanto, tem sido comum que os investimentos sejam planejados e executados em um contexto macroeconômico distinto daquele de sua efetiva internalização ao contrato de concessão. Mesmo com a autorização prévia do poder concedente e consequente execução do investimento por parte da concessionária, os processos de internalização e reequilíbrio podem demorar a ocorrer, levando a um descompasso entre o momento da realização dos investimentos e sua incorporação formal no contrato.
Isso ocorre por diversos fatores cuja análise acaba ultrapassando os limites do presente artigo, mas em geral isso decorre de questões administrativas, burocráticas e até de imprevistos no cronograma de execução dos investimentos. Fatores como a complexidade das obras, necessidade de readequações técnicas, mudanças na diretoria de agências regulatórias e até mudanças econômicas significativas podem atrasar a formalização dos aditivos contratuais.
Para além disso, não devemos esquecer ainda que, em alguns casos excepcionais, a concessionária pode ser requerida a fazer obras emergenciais que não faziam parte do plano original de investimento previsto no contrato. Nesses casos, por decorrência lógica, o pedido de reequilíbrio somente pode ser formalizado posteriormente à execução do investimento emergencial imprevisto, implicando em um natural hiato entre sua realização e sua internalização.
Essa defasagem temporal traz desafios significativos para o cálculo do reequilíbrio econômico-financeiro em sede de FCM, uma vez que as condições macroeconômicas podem mudar substancialmente entre o período de execução do investimento e o momento de sua formalização no contrato. Variações nas taxas de juros, inflação, câmbio e outros indicadores financeiros impactam diretamente a Taxa de Desconto a ser aplicada, o que pode gerar questionamentos por parte dos contratantes acerca do marco temporal a ser empregado para a definição dessa taxa e sobre a possibilidade de sua atualização após a execução do investimento.
Essa conduta, entretanto, pode provocar distorções no cálculo dos fluxos de caixa marginais, promovendo um deslocamento entre a taxa de desconto e cenário econômico do momento da realização do investimento. Isso porque a taxa reflete o custo de oportunidade do capital no momento de sua aplicação, garantindo que o cálculo do reequilíbrio seja preciso e alinhado com as condições de mercado. Isso assegura que tanto a Taxa Interna de Retorno quanto a Taxa de Desconto reflitam as condições macroeconômicas no momento da realização do investimento.
Atualizar a taxa posteriormente, além de gerar distorções e comprometer a neutralidade econômica do reequilíbrio, poderia comprometer a partilha de riscos entre as partes. Se a Taxa de Desconto fixada no momento da realização do investimento pudesse ser atualizada no momento da assinatura do termo aditivo, o poder concedente estaria, necessariamente, assumindo o risco das variações na Taxa de Desconto que poderiam ocorrer após o evento de desequilíbrio, o que poderia resultar em um reequilíbrio desfavorável ao próprio ente público.
Essa compreensão é amplamente respaldada pela própria lógica subjacente à aplicação do Fluxo de Caixa Marginal, que exige que as premissas macroeconômicas utilizadas sejam aquelas vigentes no momento em que o investimento é efetivamente realizado, ou seja, na data em que ocorre o evento de desequilíbrio. Isso garante maior segurança jurídica para ambas as partes, ao alinhar os cálculos de reequilíbrio às condições econômicas reais daquele período, evitando distorções e preservando o equilíbrio contratual.
Reguladores mais atentos a essa lógica já têm se manifestado a favor dessa abordagem. Um exemplo claro é a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que, em justificativa à Consulta Pública 6/2024, voltada para a revisão da taxa de desconto aplicada nos fluxos de caixa marginais de contratos de concessão de aeroportos como Confins e Galeão, e dos blocos Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste para o quinquênio 2025-2029, ressaltou que “a razão de ser do FCM é justamente a necessidade de encontrar uma taxa que reflita o custo de oportunidade do capital marginal no momento da ocorrência do evento que desequilibra a equação econômico-financeira do contrato”.[6]
Assim é porque é nesse momento que as condições econômicas e os custos do capital são mais concretos e conhecidos pela parte interessada, permitindo que as partes envolvidas saibam exatamente quais serão os parâmetros utilizados no cálculo do reequilíbrio e evitando surpresas e possíveis disputas no futuro. Em outras palavras, as partes afastam o risco de ter que negociar sob condições de mercado alteradas e imprevisíveis, o que pode desvirtuar o propósito original da negociação que antecedeu a realização do evento que gerou o reequilíbrio.
Justamente por essa razão o Tribunal de Contas da União (TCU), no Acórdão Plenário 2.154/2007, já havia demonstrado preocupação com distorções geradas pelo uso inadequado de premissas financeiras desatualizadas, em especial o valor da Taxa de Desconto. O TCU salientou ainda que essa prática poderia levar a resultados financeiros desproporcionais e injustos para os usuários e para o interesse público, demandando a utilização de parâmetros que reflitam adequadamente o contexto econômico contemporâneo.
Portanto, para evitar controvérsias administrativas que apenas atrasam o cumprimento das finalidades públicas, é essencial que os contratos de concessão sejam redigidos com cada vez mais clareza no que se refere ao momento adequado para a fixação da Taxa de Desconto. A definição precisa desse momento garante que a taxa reflita fielmente as condições econômicas vigentes à época da realização do investimento, assegurando um reequilíbrio econômico-financeiro justo e alinhado à realidade do mercado, além de promover maior segurança jurídica e eficiência na execução do contrato.
Essa percepção é fundamental para preservar o equilíbrio econômico-financeiro e assegurar que tanto o poder concedente quanto a concessionária tenham previsibilidade e segurança jurídica no processo de reequilíbrio.
[1]Rafael Véras explica que, na atualidade, os novos contratos de concessão de rodovias passaram a adotar a metodologia do Fluxo de Caixa Marginal, tanto para a realização de novos investimentos, quanto para observância da matriz de riscos contratual, o que pode importar em ineficiências, visto que a sua real vocação de uso está relacionada à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de novos investimentos não previstos originalmente nos encargos da concessionária. FREITAS, Rafael Véras de.O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões de rodovias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 15, n. 58, p. 199-239, abr./jun. 2017.
[2]Vide nesse sentido: CAGGIANO, Heloísa Conrado; BORDA, Danyara Barros Tarja.Análise do mecanismo de fluxo de caixa em contratos de concessão a partir da jurisprudência do Tribunal de Contas da União. In: MOREIRA, Egon Bockmann. Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e taxa interna de retorno: a lógica das concessões de parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 149-147.
[3]RIBEIRO, Maurício Portugal.Erros e acertos no uso do plano de negócios e da metodologia do fluxo de caixa marginal. Disponível em: < https://portugalribeiro.com.br/download/erros-e-acertos-no-uso-do-plano-de-negocios-e-da-metodologia-do-fluxo-de-caixa-marginal/> Acesso em: 04/09/2024.
[4]Essa razão foi justamente o que levou a ANTT a adotar a metodologia do Fluxo de Caixa Marginal para a inclusão de novos investimentos em contratos de concessão de rodovias. Essa mudança ocorreu justamente em resposta a um questionamento do Tribunal de Contas da União sobre as elevadas taxas de rentabilidade dos contratos de rodovia da 1ª etapa do Procrofe. Isso foi constatado no Processo de Acompanhamento nº 008.896/2005-2, que tratava dos estudos que embasaram os editais da 2ª etapa do Procrofe. Na ocasião, verificou-se uma taxa interna de retorno de 8,95%, significativamente inferior às taxas praticadas na primeira fase do programa, que variavam entre 17% e 24%.
[5]FREITAS, Rafael Véras de.O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões de rodovias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 15, n. 58, p. 199-239, abr./jun. 2017.
[6]Disponível em: <https://www.gov.br/anac/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consultas-publicas/consultas/2022/08/cp-08-2022-justificativa.pdf> Acesso em: 04/09/24.
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