Viabilidade econômica da drenagem urbana e do manejo de água das chuvas é sinônimo de sustentabilidade ambiental - mas depende de novos arranjos, criativos e urgentes
Isadora Cohen
Andres Vera
Publicado originalmente no JOTA
"Obra enterrada não dá voto", dizia o político. Nessa expressão, muito ouvida pelo interior do Brasil durante décadas, já coube toda a falta de entusiasmo da classe política para investir em saneamento. Não cabe mais. Nem quando o assunto é saneamento básico como direito fundamental constitucionalizado ou objetivo de sustentabilidade ambiental. Nem quando estão em pauta seus componentes historicamente mais subestimados, como os serviços de drenagem urbana e manejo de águas pluviais.
O que mudou desde então? Veio a inflexão do Novo Marco Legal do Saneamento, que abriu o setor ao parceiro privado. E o planejamento de infraestrutura para lidar com a água da chuva - ainda responsável por enchentes históricas que tiram vidas brasileiras - perdeu a titularidade divina. Falta entender porque a drenagem segue no papel de primo pobre das concessões de saneamento, e enfrentar a última etapa de um antigo desafio, que é tornar a prestação de serviço economicamente sustentável ao concessionário.
O ponto de partida da discussão ainda é um grande truísmo: o Novo Marco Legal do Saneamento editado em 2020 fez o que a legislação anterior de 2007 não havia feito. Incluiu no rol conceitual de saneamento três frentes: a infraestrutura, as instalações e as atividades de “drenagem e manejo das águas pluviais urbanas". Acertadamente, o diploma tratou ainda da necessária sustentabilidade econômico-financeira desses serviços. Noutras palavras: desde 2020, permite-se que o concessionário busque remuneração com a cobrança de drenagem urbana por meio de taxas ou tarifas.
Essa constatação não é trivial. Historicamente, a arrecadação de recursos para custear a drenagem no Brasil ora inexistiu, ora esteve (e segue) associada à cobrança de IPTU - um imposto cuja arrecadação, consideradas as necessidades municipais, nem sempre retorna à origem. A cobrança específica de taxa ou tarifa sobre drenagem contorna o problema. Também traz vantagens. De maneira geral, a mensuração da água das chuvas pode ser tecnicamente mais objetiva do que a mensuração, por exemplo, de resíduos sólidos. Essa diferença dá mais transparência à cobrança. Tanto da tarifa (um preço público) como da taxa (que atende os requisitos de disponibilidade, especificidade e divisibilidade do CTN).
A viabilidade econômico-financeira efetiva da drenagem, no entanto, não escapa a dois aspectos cruciais. O primeiro diz respeito às particularidades técnicas da macrodrenagem (constituída em larga escala pela drenagem natural de rios e córregos com o acréscimo de redes de canais, diques e piscinões) e da microdrenagem (constituída em menor escala pelas sarjetas, bocas de lobo e galerias, em conexão com a macrodrenagem).
Na macrodrenagem, a cobrança individualizada é dificultada pela escala da infraestrutura. Na microdrenagem, pode ser facilitada. E pode ainda ter seu cálculo baseado na área impermeável de um lote e nas soluções de drenagem que seu proprietário adota com o intuito de mitigar o escoamento de água para o sistema externo de microdrenagem local.
Os modelos americano e canadense, por exemplo, partiram da última premissa. Nos EUA, empresas privadas, as utilities, realizam o serviço e estruturam a cobrança do serviço a partir de uma taxa fixa e de uma taxa vinculada à contribuição de escoamento de cada lote para o sistema de microdrenagem. Há quase duas mil utilities distribuídas pelo país. O Canadá adotou sistema semelhante a partir dos anos 1990, interessado na previsibilidade e estabilidade do fluxo de receitas desse modelo bipartido de taxação.
No Brasil, a legislação de 2007 já vinculava a cobrança por serviços de drenagem à consideração do percentual de impermeabilização do lote e da existência de dispositivos de amortecimento da água das chuvas. No entanto, dados de 2017 do Sistema Nacional de Informações de Saneamento, o SNIS, indicam que apenas 6% dos municípios brasileiros mantinham alguma cobrança pelos serviços de drenagem urbana e manejo de águas pluviais - e metade desses municípios ainda o faziam pela via indireta do IPTU.
Com o novo Marco Legal, portanto, a oportunidade é dupla: fomentar a mudança de comportamento do cidadão-usuário e financiar a concessão da infraestrutura de drenagem, em qualquer de suas modalidades. A nova legislação só não indica - e nem poderia - o melhor caminho para a modelagem contratual entre poder público e parceiro privado. Aí reside o segundo aspecto crucial da viabilidade econômico-financeira dos serviços de drenagem - um ponto que ultrapassa a consideração da própria drenagem.
Trata-se do potencial de interdependência e interconexão dos inúmeros serviços de saneamento básico em seu horizonte de universalização. Por que prefeituras - ou mesmo apoiadores como o BNDES - ainda não apostam em projetos de concessão e PPPs de drenagem urbana construídos de maneira transversal e interconectada a concessões de fornecimento de água, de esgotamento sanitário ou de resíduos sólidos?
A interdependência é possível e desejável diante de desafios concretos. Serve de exemplo a Baía da Guanabara, cuja despoluição hoje cabe à concessionária de saneamento Águas do Rio, vencedora de leilões da Cedae em 2021. No estuário carioca, ocorre o fenômeno da “língua negra”: uma contaminação entre águas naturais da baía, águas do sistema de drenagem urbana e dejetos da rede de esgotamento. O resultado é visível na maré baixa, quando as águas do estuário, já manchadas pela poluição, fluem em direção ao mar.
O caso da Baía de Guanabara demonstra a importância de um planejamento de infraestrutura de saneamento alinhado ao planejamento ambiental. Uma combinação que foi ignorada no passado e, a despeito dos avanços e oportunidades verificados nas concessões de saneamento básico do Rio de Janeiro, ainda levará concessionárias e poder público à mesa, para uma articulação efetiva dos serviços de drenagem urbana, dos serviços de esgotamento sanitário e das ações de despoluição.
Vale perguntar: concessões com tamanha interconexão de serviços não caberiam eventual e idealmente a um único operador, com viabilidade econômico-financeira garantida pela via, por exemplo, de subsídios cruzados? Parcela da outorga de concessões comuns não poderiam alimentar um fundo especial dedicado a projetos de parceria público-privada com intuito de universalização dos serviços de drenagem? São caminhos.
A natureza transversal da drenagem urbana aponta ainda para uma interdependência de serviços que vai além do próprio saneamento. Arranjos de concessão e PPP podem e devem considerar a relação intrínseca, embora nem sempre óbvia, entre drenagem e regularização fundiária, preservação de ativos verdes ou mesmo mobilidade urbana.
Trata-se do conceito de “cidade-esponja”, que também tem bons exemplos brasileiros. Um deles é o novo projeto de paisagismo das estações ferroviárias da CPTM com “jardim de chuva”. Combinados à infraestrutura das edificações, os jardins têm baixo custo de implementação e o objetivo de melhorar o conforto ambiental, contribuir para a drenagem urbana, diminuir o impacto de chuvas fortes e filtrar a água antes de sua chegada aos lençóis freáticos do entorno. O projeto foi premiado recentemente pela Associação Internacional de Transporte Público (UITP Latin America).
De volta ao Novo Marco Legal do Saneamento: não é nenhuma novidade que abriu uma janela de oportunidade para solucionar o problema do saneamento brasileiro. Imperativo é saber que a solução deve incluir a drenagem urbana e manejo de águas pluviais - ignorá-los em potencial é perder a chance de quitar parte do atraso civilizatório brasileiro.
A viabilidade econômico-financeira dos serviços de drenagem passa pela estruturação de concessões e PPPs com atenção dedicada à integração entre planejamento urbano, ambiental e de infraestrutura de saneamento. Gestores públicos que olham para cima, principalmente na temporada de chuvas, sabem há tempo que obra enterrada dá voto. Mas "drenagem não dá dinheiro", ainda dirá o senso comum. Até quando?
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